quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Onde Mora a Poesia

 Onde Mora a Poesia


Nas sombras que o sol derruba em alguns recantos do jardim, pela manhã.

No pedaço de lua que aparece no vitrô do banheiro.

Na luz das velas, quando falta energia e também quando não falta.

Nas pequenas casinhas, semelhantes as de um pequeno vilarejo, que enfeitam cada degrau da escada.

Em todas as mil peças do quebra-cabeças de Paris, montado a várias mãos, sob risos, cantorias e discussões animadas.

No cheiro de café (como não ser clichê?), a qualquer momento do dia.

No aninhar dos gatos, principalmente quando me incluem. 

Na "Ave Maria" que toca na Matriz todos os dias às 17:55, e ecoa até às minhas sacadas.

No  roupão cereja e nos óculos escuros, caminhando juntos pelo jardim ao redor da casa, na fuga da clausura.

No sol se pondo no terraço, com todos os prédios envoltos em dourado, testemunhando a bela cena.

No verniz fosco recém-passado na cadeira antiga do pai de Paula (sabemos porque ela ficou aqui).

Nas flores que abriram hoje pela manhã.

No cheiro do pão no forno, de qualquer nacionalidade, que encheu toda a casa.

Nas fotografias antigas em papel, encontradas casualmente na procura dos documentos novos.

Na eterna espera, que torna possível a continuidade dos dias.

Nos sapatos esquecidos, que guardam histórias de tantos caminhos.

Nos risos longínquos, ouvidos pela casa, sem que se conheça os motivos que os inspiraram.

Nos antigos e imponentes diplomas, aposentados na parede do meio da escada.

Nas pequenas abelhas que voam ao redor das flores do pé de manjericão.

Nas marcas deixadas pela chuva e pelo tempo, na lateral da casa, lá no alto.

Nas folhas secas que caem no chão da oficina sempre vazia.

No telhado que protege.

Na água quente que acalenta.

No cobertor que aquece.

Na fé que alimenta.

Nas palavras que eternizam.

A Fúria

 O lustre que não foi limpo. O vestido novo que não cobriu memórias velhas. A surdez e as repetições sufocantes. A infiltração que não cessa, nunca. As janelas que precisam ser fechadas, sempre. O vento que não pode ventar. A chuva que não pode chegar. A hora que não pode passar. O fanatismo lancinante, as lacunas de memória, o vazio, a vertigem, a tontura, a mania, o controle, a doença, a ameaça constante, o horário, a exigência, a vigia, a vigília, a exigência, o medo, a critica, a negação, a insônia, o drama, a vítima, o descaso, o fracasso, a lista de compras, o prazo.

O ápice.

Da loucura. Da demência. Do desespero. Da necessidade de fuga.

A fuga literária. O Mito da Caverna (há luz?). A pirâmide de Maslow (que degrau?). Os universos paralelos. O abstrato e o concreto.

A velocidade. 

A hora que passa. O dia que amanhece. A noite que anoitece. E tudo, de novo. Sem parar, sem cessar, sem frear, sem calar, sem lembrar, sem sanar.

O nó.

Na garganta, no trânsito, no estômago, na gravata, na artéria, no fio que não se encontra.

A vontade.

De que silencie, de que seja leve, de que adormeça, de que seja lento, de que seja terno.

O corpo.

Que avisa, que insiste, que grita, implora, se arrasta 

e desiste.